quinta-feira, 14 de outubro de 2010

CRÓNICA DE UMA VIAGEM DE CHAPA

Recebi, de alguém muito especial para mim, uma crónica. Uma das belas crónicas de viagem que a minha memória me impõe de lembrar. Um autêntico espelho da realidade, por muitos vivenciada, um por pouco por todo o país, mas diariamente em Maputo e Matola. Eis que a publico a seguir:
Meio dia. Vila Ulongwé. Terminal dos chapas para Tete.
Minibus, vulgo chapa, de 9 lugares, superlotado com 18 lugares. Entrei. Sentei-me no único lugar possível, na minha ignorante opinião, o último dos últimos. Como estava enganada... No último banco estavam duas jovens mulheres com os seus quatro filhos, todos pequenos, três com dezoito meses, dois gémeos, e uma menina de 8 anos, e além delas um homem. Não havia espaço para uma cabeça de alfinete, mas o cobrador insistia que ali tinham que se sentar quatro adultos porque a crianças não contavam. Ah!, a menina de oito anos levava, aconchegadinha ao seu peito, uma franga, uma franga que de vez em quanto se fazia anunciar com uns pius, pius, meios aflitos, meios a pedir misericórdia, não percebi se para ela, ou se para as duas jovens mulheres e para as crianças.
O cobrador só deixou de reclamar o espaço, que no seu entender tinha que existir, pois as crianças não ocupavam lugar, quando alguém lhe disse, que o espaço que ele estava a imaginar existir, seria pago. Assim, o chapa de nove lugares, superlotado com dezanove, iniciou a sua viagem para Tete, cidade do distrito.
Antes de me ter apercebido deste incidente, houve algo que chamou a atenção do meu apurado olfacto. O odor, o cheiro, o perfume, que daquele espaço exalava. Era um misto de bedun, peixe seco, alhos e cebolas. Qual aroma de um qualquer Calvin Klein africano. Daqueles odores que nunca mais esqueceremos, ao passar por um qualquer chapa, algures em África, e se esse odor, naturalmente, flutuar no ar, vou-me lembrar desta viagem.
O chapa de 9 lugares, superlotado... começou a rolar com destino a Tete, e sabem o que começou também a rolar? Ninguém imagina! Como disse, no banco de trás iam duas jovens mulheres com quatro crianças, três delas de dezoito meses, duas gémeas, pois eram precisamente essas que faziam rolar as mamas de sua mãe. Lutavam entre elas pela mama esquerda. A direita já tinha dado o que tinha a dar, e agora era a esquerda a preferida dos meninos, e... do dono do chapa de 9 lugares, superlotado... Esse, com olhar guloso, qual menino de colo e ainda por desmamar, dizia:- “Então eles não querem a outra ?”Ao que lhe foi respondido pela mãe, com um ar inocente:- “Já mamaram nela !”. E os meninos lutavam pela suculenta mama, uma vez que a outra pendia murcha e vazia. A mãe lá decidiu, ora mamava um, ora mamava outro, mas as duas fontes de alimento ali iam, expostas qual manjar exposto aos olhares gulosos do dono do chapa de 9 lugares, superlotado...
Enquanto se desenrolava esta cena, ouviu-se um toque polifónico de um telemóvel, era o homem sentado ao lado a mãe dos gémeos que estava a receber uma chamada do “homem de Deus”. E o homem sentado ao lado a mãe dos gémeos dizia: - “Boa tarde “homem de Deus” vou a caminho de Tete “homem de Deus”, eu os meus companheiros em Deus já pusemos o telhado na igreja, falta pôr no escritório... (pausa). Não sabia que o seu escritório “homem de Deus” tinha que ser primeiro, desculpe “homem de Deus”, no próximo Sábado será o seu escritório “homem de Deus”...”
Não sei se foi a repetição em forma de lenga-lenga de “homem de Deus”, mas quando a conversa acabou as crianças dormiam o sono dos justos. Talvez cansados de lutar pela mama esquerda...
Nesta acalmia, encontrei-me a pensar nos meus amigos e no meu filho que estariam em situações completamente distintas da minha, e como apesar de a amizade e do amor (no caso do Pedro) nos unir, cada um de nós tem caminhos e vivências diferentes. Pensei no Pedro que estaria no seu gabinete em Portugal, todo equipado com novas tecnologias de informática. No Ir. Andrade a colorir de encarnado as folhas onde os alunos horas antes responderam ao teste de português, e nas emoções sentidas a cada risco. No Pe. Vítor a trabalhar no poço de Mwala wa wphande, poço que irá facilitar a vida a centenas de mulheres, que como decerto as minhas companheiras de viagem, têm que percorrer alguns quilómetros para irem buscar água, e com o poço na sua aldeia, a vida já de si madrasta para estas pessoas, fica um pouco mais “mãe”. Pensei também no Pe. Paco, que se encontra em visita aos doentes das aldeias mais afastadas, e por isso mesmo, sem a visita de um padre durante longos periodos, também ele vivendo e despertando emoções com o seu testemunho de fé, de seguidor de Jesus, e do Amor de Deus.
Absorta nestes pensamentos e lado a lado com estes três amigos que dão a sua vida ao próximo testemunhando a cada momento o Amor de Jesus por nós, fui despertada pelo som melodioso do meu telemóvel, era um amigo de Portugal, que com muita alegria e emoção na voz, me informava que a sua mulher e minha amiga, estava melhor e que já não precisava de fazer mais quimioterapia. Que alegria eu senti nesse momento, e... Meus Deus ! Aquele chapa de 9 lugares, superlotado... albergava quase todo o meu mundo, o meu filho, os meus três amigos missionários, de Portugal, o meu amigo e a sua mulher, os gémeos, as jovens mulheres, o subdito do “homem de Deus” e todas as outras pessoas. Estava eu nestas cogitações quando chegámos a Mussakama... os que tinham mais apetite trincavam com vontade umas pernas de galinha frita que deviam estar muito saborosas, mas o bom mesmo foram as batatinhas fritas que os meus companheiros de um palmo e meio comiam deliciados, esquecendo por momentos o delicioso néctar existente algures na sua mãe.
Olhei os três bebés, redondinhos, lindos e luzidios, não resultado de um qualquer creme Baby Johnson's anti-alérgico, mas do óleo, mais que queimado, de fritar as batatas. Olhando para eles apercebi-me que eram a imagem de pequenos diamantes, começados a serem burilados, pois já brilhavam, quais diamantes usados por mulheres ricas, que não sabem o que é dar de mamar, e muito menos a dois gémeos que lutam pelo que querem, e também não sabem o quanto é delicioso viajar num chapa de 9 lugares, superlotado com dezanove pessoas de verdade, que vivem o momento, o dia-a-dia, e entre elas dois gémeos que lutavam pelo leite da mama esquerda da sua mãe, mãe essa que tem um sorriso lindo de felicidade, que inundava os seus olhos negros e brilhantes.
Os passageiros foram saindo a partir de Moatize, os meus queridos companheiros seguiram os seus caminhos e as suas vidas, e como são sempre as crianças que mudam a vida e o mundo, estes também mudaram, além de muitas outras coisas, o odor daquele chapa de 9 lugares, superlotado... Quando saíram, ao cheiro de bedum, peixe seco, alhos e cebolas, do início de viagem, juntava-se o cheiro natural das crianças de dezoite meses fechadas num chapa durante 4 horas, e... de uma franga aconchegadinha ao peito de uma menina linda de oito anos.
Elizabeth
Tete, 12 de Outubro de 2100